Adélia Prado

Fátima CChaves


O sempre amor

Amor é a coisa mais alegre

amor é a coisa mais triste

amor é a coisa que mais quero.

Por causa dele falo palavras como lanças.

Amor é a coisa mais alegre

amor é a coisa mais triste

amor é a coisa que mais quero.

Por causa dele podem entalhar-me,

sou de pedra-sabão.

Alegre ou triste,

amor é a coisa que mais quero.

- Adélia Prado (Divinópolis – MG, 1935), em "Bagagem".

Formas

De um único modo se pode dizer a alguém:

Não esqueço você.

A corda do violoncelo fica vibrando

sozinha sob um arco invisível

e os pecados desaparecem como ratos flagrados

Meu coração causa pasmo porque bate e tem sangue nele

e vai parar um dia e virar um tambor patético se falas ao meu ouvido:

não esqueço você.

Manchas de luz na parede e uma rosa pequena com três rosas de plástico

Tudo no mundo é perfeito.

E a morte é amor.

- Adélia Prado, em "A faca no peito".

Corridinho

O amor quer abraçar e não pode.

A multidão em volta,

com seus olhos cediços,

põe caco de vidro no muro

para o amor desistir.

O amor usa o correio,

o correio trapaceia,

a carta não chega,

o amor fica sem saber se é ou não é.

O amor pega o cavalo,

desembarca do trem,

chega na porta cansado

de tanto caminhar a pé.

Fala a palavra açucena,

pede água, bebe café,

dorme na sua presença,

chupa bala de hortelã.

Tudo manha, truque, engenho:

é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo.

Mas água o amor não é.

- Adélia Prado, em "Poesia reunida".

Amor violeta

O amor me fere é debaixo do braço,

de um vão entre as costelas.

Atinge meu coração é por esta via inclinada.

Eu ponho o amor no pilão com cinza

e grão de roxo e soco. Macero ele,

faço dele cataplasma

e ponho sobre a ferida.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Amor feinho

Eu quero amor feinho.

Amor feinho não olha um pro outro.

Uma vez encontrado é igual fé,

não teologa mais.

Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo

e filhos tem os quantos haja.

Tudo que não fala, faz.

Planta beijo de três cores ao redor da casa

e saudade roxa e branca,

da comum e da dobrada.

Amor feinho é bom porque não fica velho.

Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:

eu sou homem você é mulher.

Amor feinho não tem ilusão,

o que ele tem é esperança:

eu quero um amor feinho.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Antes do nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.

Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,

os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",

o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível

muleta que me apóia.

Quem entender a linguagem entende Deus

cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.

A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,

foi inventada para ser calada.

Em momentos de graça, infreqüentíssimos,

se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.

Puro susto e terror.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Contramor

O amor tomava a carne das horas

e sentava-se entre nós.

Era ele mesmo a cadeira, o ar, o tom da voz:

Você gosta mesmo de mim?

Entre pergunta e resposta, vi o dedo,

o meu, este que, dentro de minha mãe,

a expensas dela formou-se

e sem ter aonde ir fica comigo,

serviçal e carente.

Onde estás agora?

Sou-lhe tão grata, mãe,

sinto tanta saudade da senhora…

Fiz-lhe uma pergunta simples, disse o noivo.

Por que esse choro agora?

- Adelia Prado, em "Miserere".

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

sem precisar mentir.

Não sou feia que não possa casar,

acho o Rio de Janeiro uma beleza e

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

— dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

já a minha vontade de alegria,

sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

A serenata

Uma noite de lua pálida e gerânios

ele viria com boca e mãos incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero

e só vejo dois caminhos:

ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobro

o que não for natural como sangue e veias

descubro que estou chorando todo dia,

os cabelos entristecidos,

a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que vem,

de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos

— só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei, se não for santa?

- Adélia Prado, em "Bagagens".

Amor violeta

O amor me fere é debaixo do braço,

de um vão entre as costelas.

Atinge meu coração é por esta via inclinada.

Eu ponho o amor no pilão com cinza

e grão de roxo e soco. Macero ele,

faço dele cataplasma

e ponho sobre a ferida.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Ensinamento

Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo.

Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo:

“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente,

Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Impressionista

Uma ocasião,

meu pai pintou a casa toda

de alaranjado brilhante.

Por muito tempo moramos numa casa,

como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Ensinamento

Minha mãe achava estudo

a coisa mais fina do mundo.

Não é.

A coisa mais fina do mundo é o sentimento.

Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,

ela falou comigo:

“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.

Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente,

Não me falou em amor.

Essa palavra de luxo.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Antes do nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.

Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,

os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",

o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível

muleta que me apóia.

Quem entender a linguagem entende Deus

cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.

A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,

foi inventada para ser calada.

Em momentos de graça, infreqüentíssimos,

se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.

Puro susto e terror.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Exausto

Eu quero uma licença de dormir,

perdão pra descansar horas a fio,

sem ao menos sonhar

a leve palha de um pequeno sonho.

Quero o que antes da vida

foi o sono profundo das espécies,

a graça de um estado.

Semente.

Muito mais que raízes.

- Adélia Prado, em "Bagagem".

Janela

Janela, palavra linda.

Janela é o bater das asas da borboleta amarela.

Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,

janela jeca, de azul.

Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,

meu pé esbarra no chão.

Janela sobre o mundo aberta, por onde vi

o casamento da Anita esperando neném, a mãe

do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi

meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:

minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.

Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,

clarabóia na minha alma,

olho no meu coração.

- Adélia Prado, em "Poesia reunida".

Neurolingüística

Quando ele me disse

ô linda

pareces uma rainha,

fui ao cúmice do ápice

mas segurei meu desmaio.

Aos sessenta anos de idade,

vinte de casta viuvez,

quero estar bem acordada,

caso ele fale outra vez.

- Adélia Prado, em "Oráculos de maio".

O nascimento do poema

O que existe são coisas,

não palavras. Por isso

te ouvirei sem cansaço recitar em búlgaro

como olharei montanhas durante horas,

ou nuvens.

Sinais valem palavras,

palavras valem coisas,

coisas não valem nada.

Entender é um rapto,

é o mesmo que desentender.

Minha mãe morrendo,

não faltou a meu choro este arco-íris:

o luto irá bem com meus cabelos claros.

Granito, lápide, crepe,

são belas coisas ou palavras belas?

Mármore, sol, lixívia.

Entender me seqüestra de palavras e de coisa,

arremessa-me ao coração da poesia.

Por isso escrevo os poemas

pra velar o que ameaça minha fraqueza mortal.

Recuso-me a acreditar que homens inventam as línguas,

é o Espírito quem me impele,

quer ser adorado

e sopra no meu ouvido este hino litúrgico:

baldes,vassouras, dívidas e medo,

desejo de ver Jonathan e ser condenada ao inferno.

Não construí as pirâmides. Sou Deus.

- Adélia Prado, do livro "O pelicano", em "Poesia reunida".

Tão bom aqui

Me escondo no porão

para melhor aproveitar o dia

e seu plantel de cigarras.

Entrei aqui para rezar,

agradecer a Deus este conforto gigante.

Meu corpo velho descansa regalado,

tenho sono e posso dormir,

Tendo comido e bebido sem pagar.

O dia lá fora é quente,

a água na bilha é fresca,

acredito que sugestionamos elétrons.

Eu só quero saber do microcosmo,

O de tanta realidade que nem há.

Na partícula visível de poeira

Em onda invisível dança a luz.

Ao cheiro de café minhas narinas vibram,

Alguém vai me chamar.

Responderei amorosa,

Refeita de sono bom.

Fora que alguém me ama,

Eu nada sei de mim.

- Adélia Prado, em “A duração do dia”.

"Esconder-se no porão, de vez em quando, é necessidade vital. Precisamos de silêncio e solidão, e, não, apenas os poetas. Senão, corremos o perigo de nos esvairmos em som, fúria e esterilidade. O campo para que a palavra se instale para o autor e para o leitor é o campo do silêncio e da audição."

- Adélia Prado, em jornal 'O Tempo', 16 de outubro de 2010.

GRAÇA

O mundo é um jardim. Uma luz banha o mundo.

A limpeza do ar, os verdes depois das chuvas,

os campos vestindo a relva como o carneiro a sua lã,

a dor sem fel: uma borboleta viva espetada.

Acodem as gratas lembranças:

moças descalças, vestidos esvoaçantes,

tudo seivoso como a juventude,

insidioso prazer sem objeto.

Insisto no vício antigo — para me proteger do inesperado

[gozo.

E a mulher feia? E o homem crasso?

Em vão. Estão todos nimbados como eu.

A lata vazia, o estrume, o leproso no seu cavalo

estão resplandecentes. Nas nuvens tem um rei, um reino,

um bobo com seus berloques, um príncipe. Eu passeio

[nelas,

é sólido. O que não vejo, existindo mais que a carne.

Esta tarde inesquecível Deus me deu. Limpou meus olhos

[e vi:

como o céu, o mundo verdadeiro é pastoril.

– Adélia Prado, do livro “O coração disparado”.

DOLORES

Hoje me deu tristeza,

sofri três tipos de medo

acrescido do fato irreversível:

não sou mais jovem.

Discuti política, feminismo,

a pertinência da reforma penal,

mas ao fim dos assuntos

tirava do bolso meu caquinho de espelho

e enchia os olhos de lágrimas:

não sou mais jovem.

As ciências não me deram socorro,

não tenho por definitivo consolo

o respeito dos moços.

Fui no Livro Sagrado

buscar perdão pra minha carne soberba

e lá estava escrito:

“Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada, se tornou capaz de ter uma descendência…”

Se alguém me fixasse, insisti ainda,

num quadro, numa poesia…

e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos…

Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques, das que jamais verão seu nome impresso e no entanto sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas não recusam casamento, antes acham sexo agradável, condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo e varrer a casa de manhã.

Uma tal esperança imploro a Deus.

– Adélia Prado, do livro “Poesia Reunida”.

Adélia Luzia Prado de Freitas (Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935). Poetisa, professora, filósofa, romancista e contista brasileira.

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