Caio Fernando Abreu

Fátima CChaves


A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso.

- Caio Fernando Abreu, em "Ovelhas Negras".

“Te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez, que leve para longe da minha boca este gosto podre de fracasso, este travo de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando. A chave gira na porta. Preciso me apoiar contra a parede para não cair.”

- Caio Fernando Abreu, fragmento do conto “Os Sobreviventes". em: “Morangos Mofados”.

Faz anos navego o incerto

Faz anos navego o incerto.

Não há roteiros nem portos.

Os mares são de enganos

e o prévio medo dos rochedos

nos prende em falsas calmarias.

As ilhas no horizonte, miragens verdes.

Eu não queria nada além

de olhar estrelas

como quem nada sabe

para trocar palavras, quem sabe um toque

com o surdo camarote ao lado

mas tenho medo do navio fantasma

perdido em pontas sobre o tombadilho

dou a face e forma a vultos embaçados.

A lua cheia diminui a cada dia.

Não há respostas.

Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração

como uma âncora.

- Caio Fernando Abreu, em "Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu".

Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair assim num poço de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê.”

- Caio Fernando Abreu, fragmento do conto "Nos Poços". em: “O Ovo Apunhalado”.

Ninguém saberá da secura de nossos olhos

(20 de dezembro de 1975)

Ninguém saberá da secura de nossos olhos

da dureza de nossa boca ninguém saberá

do fio das unhas da dor no dente

do sangue guardado no fundo da gaveta

ninguém adivinhará os jardins atrás do muro fechado

ninguém quebrará o ferro do portão

ninguém violentará o secreto

ninguém te tocará profundamente

ninguém te saberá

ninguém.

Por isso olhamos as nuvens

sentados ao vento que não sopra

enquanto os balanços rangem

os rádios cantam

e a rua intocável como um quadro

pintado por outro.

Por isso olhamos em volta

e o que se passa além de nossa (uma palavra ileg.))

não nos soluciona

(ninguém sabe

ninguém saberá).

O caule quebrado do girassol

o livro de Toynbee sobre os degraus

a caneta riscando o papel

as nuvens

a tarde

a rua

o medo.

- Caio Fernando Abreu, em "Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu".

− “São tudo histórias, menino. A história que está sendo contada, cada um a transforma em outra, na história que quiser. Escolha, entre todas elas, aquela que seu coração mais gostar, e persiga-a até o fim do mundo. Mesmo que ninguém compreenda, como se fosse um combate. Um bom combate, o melhor de todos, o único que vale a pena. O resto é engano, meu filho, é perdição.”

- Caio Fernando Abreu, em "Onde andará Dulce Veiga?".

Stone song

(Porto Alegre, 1996)

Eu gosto de olhar as pedras

que nunca saem dali.

Não desejam nem almejam

ser jamais o que não são.

O ser das pedras que vejo

é só ser, completamente.

Eu quero ser como as pedras

que nunca saem dali.

Mesmo que a pedra não voe,

quem saberá de seus sonhos?

Os sonhos não são desejos,

os sonhos sabem ser sonhos.

Eu quero ser como as pedras

e nunca sair daqui.

Sempre estar, completamente,

onde estiver o meu ser.

- Caio Fernando Abreu, em "Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu".

Deus, põe teu olho amoroso sobre todos os que já tiveram um amor e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem - nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa. Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV... Olha também pelo motorista de táxi que confessa não ter mais esperança alguma... Olha por todos aqueles que queriam ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra vida que não a que vivem... Deita teu perdão sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma - sobre esses que sobreviveram a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões.”

- Caio Fernando Abreu, fragmentos de “Zero grau de libra", em ‘Pequenas Epifanias”.

Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro.”

- Caio Fernando Abreu, fragmento de “Lixo e Purpurina”, em: “Ovelhas Negras”.

A solidão às vezes é tão nítida como uma companhia. Vou me adequando, vou me amoldando. Nem sempre é horrível. Às vezes é até bem mansinha. Mas sinto tão estranhamente que o amor acabou.”

- Caio Fernando Abreu, fragmento da “carta à Jacqueline Cantore", em “Cartas – Caio Fernando Abreu”.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se fosse nada.”

- Caio Fernando Abreu, em “Os Dragões não conhecem o paraíso”.

Descobre, desvenda. Há sempre mais por trás. Que não te baste nunca uma aparência do real."

- Caio Fernando Abreu, fragmento de "Dodecaedro Sétimo fragmento da décima terceira voz", em: “Triângulo das águas”.

Caio Fernando Loureiro de Abreu (12 de setembro de 1948, Santiago do Boqueirão RS - 25 de fevereiro de 1996, Porto Alegre RS). Jornalista, contista, dramaturgo e poeta brasileiro.

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