Cecília Meireles

Fátima CChaves


Aqui está minha vida.

Esta areia tão clara com desenhos de andar

dedicados ao vento.

Aqui está minha voz,

esta concha vazia, sombra de som

curtindo seu próprio lamento

Aqui está minha dor,

este coral quebrado,

sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança,

este mar solitário que de um lado era amor e, de outro, esquecimento.

- Cecília Meireles, no livro "Retrato Natural".

"Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira."

- Cecília Meireles, do poema "Desenho", no Livro "Mar absoluto".

Discurso

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:

deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:

mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho

e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,

mas houve sempre muitas nuvens.

E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando,

Se eu nem sei onde estou,

como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! se eu nem sei quem sou,

como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

-Cecília Meireles, no livro “Viagem”.

Herança

Eu vim de infinitos caminhos,

e os meus sonhos choveram lúcido pranto

pelo chão.

Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,

essa vida, que era tão viva, tão fecunda,

porque vinha de um coração?

E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,

do pranto que caiu dos meus olhos passados,

que experiência, ou consolo, ou prêmio, alcançarão?

- Cecília Meireles, no livro “Viagem”.

Liberdade essa palavra, que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique, e não há ninguém que não entenda.”

- Cecília Meireles, no livro "Romanceiro da Inconfidência".

Motivo

Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:

sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,

não sinto gozo nem tormento.

Atravesso noites e dias

no vento.

Se desmorono ou se edifico,

se permaneço ou me desfaço,

— não sei, não sei. Não sei se fico

ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.

E um dia sei que estarei mudo:

— mais nada.

-Cecília Meireles, no livro “Viagem”.

Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,

ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,

ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,

quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa

estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,

ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…

e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,

se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda

qual é melhor: se é isto ou aquilo.

-Cecília Meireles, no livro“Ou isto ou aquilo”.

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio tão amargo.

Eu não tinha estas mãos tão sem força,

Tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,

Tão simples, tão certa, tão fácil:

– Em que espelho ficou retida

a minha face?

-Cecília Meireles, no livro “Viagem”.

Reinvenção

A vida só é possível

reinventada.

Anda o sol pelas campinas

e passeia a mão dourada

pelas águas, pelas folhas…

Ah! tudo bolhas

que vem de fundas piscinas

de ilusionismo… — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.

Vem a lua, vem, retira

as algemas dos meus braços.

Projeto-me por espaços

cheios da tua Figura.

Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço…

Só — no tempo equilibrada,

desprendo-me do balanço

que além do tempo me leva.

Só — na treva,

fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.

-Cecília Meireles, no livro “Vaga Música”.

"A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la."

- Cecília Meireles, em "Obra em prosa".

A bailarina

Esta menina

tão pequenina

quer ser bailarina.

Não conhece nem dó nem ré

mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá

Mas inclina o corpo para cá e para lá.

Não conhece nem lá nem si,

mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda, com os bracinhos no ar

e não fica tonta nem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu

e diz que caiu do céu.

Esta menina

tão pequenina

quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,

e também quer dormir como as outras crianças.

- Cecília Meireles, no livro "Ou isto ou aquilo".

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até hoje...

Hoje desaprendo o que tinha aprendido até hoje

e que amanhã recomeçarei a aprender.

Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:

todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas.

Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência

dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.

E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de riso e pedras.

Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.

De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,

minha verdade, sem troca, sem equivalência nem desengano

permanece constante, obrigatória, livre:

enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.

- Cecília Meireles, no livro "Cecília de bolso".

Cântico XIII - Renova-te

Renova-te.

Renasce em ti mesmo.

Multiplica os teus olhos, para verem mais.

Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.

Destrói os olhos que tiverem visto.

Cria outros, para as visões novas.

Destrói os braços que tiverem semeado,

Para se esquecerem de colher.

Sê sempre o mesmo.

Sempre outro. Mas sempre alto.

Sempre longe.

E dentro de tudo.

- Cecília Meireles, no livro "Cânticos".

Cecília Benevides de Carvalho Meireles (7 de novembro de 1901, Rio de Janeiro - 09 de novembro de 1964, Rio de Janeiro). Educadora, escritora e poetisa brasileira.

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