Charles Baudelaire

Fátima CChaves


O crepúsculo romântico

Quão belo é o sol quando no céu se ergue risonho,

E qual uma explosão nos lança o seu bom-dia!

– Feliz quem pode com amor e ébria alegria

Saudar-lhe o ocaso mais glorioso do que um sonho!

Recordo-me! Eu vi tudo, a flor, o sulco, a fonte,

Murchar sob o esplendor dessa pupila que arde…

– Corramos todos sem demora ao poente, é tarde,

Para abraçar um raio oblíquo no horizonte!

Mas eu persigo em vão o Deus que ora se ausenta;

A irresistível Noite o seu império assenta,

Úmida, negra, erma de estrelas ou faróis;

Um odor de sepulcro em meio às trevas vaga,

E junto aos pantanais meu pé medroso esmaga

Inesperadas rãs e frios caracóis.

- Charles Baudelaire [tradução Ivan Junqueira]. em "Charles Baudelaire – poesia e prosa".

O estrangeiro

— A quem mais amas tu, homem enigmático, dize: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?

— Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão.

— Teus amigos?

— Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido.

— Tua pátria?

— Ignoro em qual latitude ela esteja situada.

— A beleza?

— Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal.

— O ouro?

— Eu o detesto como vocês detestam Deus.

— Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro?

— Eu amo as nuvens... as nuvens que passam lá longe... as maravilhosas nuvens!

- Charles Baudelaire [tradução Aurélio Buarque de Holanda Ferreira], em "Charles Baudelaire – poesia e prosa".

Embriaga-te

Deve-se estar sempre bêbado. Está tudo aí: é a única questão. A fim de não se sentir o fardo horrível do Tempo que parte tuas espáduas e te dobra sobre a terra, é preciso te embriagares sem trégua.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a teu gosto. Mas embriaga-te.

E se alguma vez, sobre os degraus de um palácio, sobre a verde relva de uma vala, na sombria solidão de teu quarto, tu acordas com a embriaguez já minorada ou finda, peça ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo aquilo que foge, a tudo aquilo que geme, a tudo aquilo que gira, a tudo aquilo que canta, a tudo aquilo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, te responderão: "É a hora de se embriagar! Para não ser como os escravos martirizados no Tempo, embriaga-te; embriaga-te sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, a teu gosto.

- Charles Baudelaire, em "Poetas franceses do século XIX".

Correspondências

A Natureza é um templo onde vivos pilares

Deixam sair às vezes palavras confusas:

Por florestas de símbolos, lá o homem cruza

Observado por olhos ali familiares.

Tal longos ecos longe lá se confundem

Dentro de tenebrosa e profunda unidade

Imensa como a noite e como a claridade,

Os perfumes, as cores e os sons se transfundem.

Perfumes de frescor tal a carne de infantes,

Doces como o oboé, verdes igual ao prado,

– Mais outros, corrompidos, ricos, triunfantes,

Possuindo a expansão de algo inacabado,

Tal como o âmbar, almíscar, benjoim e incenso,

Que cantam o enlevar dos sentidos e o senso.

-Charles Baudelaire, em "Poetas franceses do século XIX".

Um hemisfério numa cabeleira

Deixa-me respirar bastante, bastante, o odor de teus cabelos, neles mergulhar toda a minha face, como um homem agitado dentro da água de um manancial e sacudi-los com minha mão como um lenço aromático a fim de abanar as lembranças no ar.

Se pudesses saber tudo o que vejo! tudo o que sinto! tudo o que escuto em teus cabelos! Minha alma viaja sobre o perfume como a alma de outros homens sobre a música.

Teus cabelos contêm um sonho inteiro cheio de mastros e de velames; contêm os imensos mares dos quais as monções me transportam a climas encantadores, onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera é perfumada pelas frutas, pelas folhas e pela pele humana.

No oceano de tua cabeleira, entrevejo um porto formigando em cantos melancólicos, homens vigorosos de todas as nações e navios de todas as formas desenhando suas arquiteturas delgadas e complicadas sobre um vasto céu onde se emproa o calor eterno.

Nas carícias de tua cabeleira, reencontro os langores das longas horas passadas sobre um divã, no camarote de um belo navio, embalados pelo balanço imperceptível do porto, entre os vasos de flores e as bilhas refrescantes.

No foco ardente de tua cabeleira, respiro o odor do tabaco misturado com o ópio e o açúcar; na noite de tua cabeleira, vejo resplandecer o infinito do azul tropical; sobre as bordas de penugem de tua cabeleira, embriago-me com os aromas do alcatrão, do almíscar e do óleo de coco.

Deixa-me morder longamente tuas tranças espessas e negras. Quando mordisco teus cabelos elásticos e rebeldes, parece-me que devoro lembranças.

-Charles Baudelaire, em "Poetas franceses do século XIX".

A alma do vinho

A alma do vinho assim cantava nas garrafas:

"Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,

Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,

Um cântico em que há só fraternidade e luz!

Bem sei quanto custou, na colina incendida,

De causticante sol, de suor e de labor,

Para fazer minha alma e engendrar minha vida;

Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,

Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo

À goela do homem que já trabalhou demais,

E seu peito abrasante é doce tumba que acho

Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.

Não ouves retirar a domingueira toada

E esperanças chalrar em meu seio, febris?

Cotovelos na mesa a manga arregaçada;

Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:

Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;

A teu filho farei voltar a força e a cor

E serei para tão tenro atleta da vida

Como o óleo e os tendões enrija ao lutador.

Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,

Grão precioso que lança o eterno Semeador,

Para que enfim do nosso amor nasça a poesia

Que até Deus subirá como uma rara flor!”

- Charles Baudelaire, em "Flores das flores do mal de Baudelaire" (tradução e notas de Guilherme de Almeida).

A Beatriz

Num solo hostil, crestado e cheio de aspereza,

Enquanto eu me queixava um dia à natureza,

E de meu pensamento ao acaso vagando

Fosse o punhal no coração sem pressa afiando,

Em pleno dia eu vi, sobre a minha cabeça,

Prenúncio de borrasca, uma nuvem espessa,

Trazendo um bando de demônios maliciosos,

Semelhantes a anões perversos e curiosos.

Entreolham-se a mirar-me, aguda e friamente,

E, como o povo que na rua olha um demente,

Eu ps via rir, entre si cochichando,

Piscando os olhos e também sinais trocando:

“Contemplemos em paz essa caricatura

Que do fantasma de Hamlet imita a postura,

Os cabelos ao vento e o ar sempre hesitante.

Não causa pena ver agora esse farsante,

Esse idiota, esse histrião ocioso, esse indigente,

Que seu papel de artista ensaia à nossa frente,

Querer interessar, cantando as suas dores,

Os grilos, os falcões, os córregos e as flores,

E mesmo a nós, que concebemos esses prólogos,

Aos berros recitar na praça os seus monólogos?”

Com meu orgulho sem limite, eu poderia

Domar a nuvem dos anões em gritaria,

Deles desviando a fronte esplêndida e serena,

Caso não visse erguer-se, em meio à corja obscura

- Crime que até a própria luz do sol abala! -

A deusa a cujo olhar outro nenhum se iguala,

Que com eles de minha angústia escarnecia,

E às vezes um afago imundo lhes fazia.

- Charles Baudelaire [tradução Ivan Junqueira], em "Charles Baudelaire – poesia e prosa".

O rebelde

Um anjo em fúria qual uma águia cai do céu;

Segura, a garra adunca, os cabelos do ateu

E, sacudindo-os, diz: “À regra serás fiel!”

(Sou teu Anjo guardião, não sabias?) És meu!

Pois é preciso amar, sorrindo à pior desgraça,

O perverso, o aleijado, o mendigo, o boçal,

Para que estendas a Jesus, quando ele passa,

Com tua caridade um tapete triunfal.

Eis o amor! Antes que a alma tenhas em ruínas,

Teu êxtase reaviva à glória e à luz divinas;

Esta é a Volúpia dos encantos Celestiais!

E o Anjo, que a um tempo nos exalta e nos lamenta,

Com punhos de gigante e anátema atormenta;

Mas o ímpio sempre diz: “Não serei teu jamais!”

- Charles Baudelaire [tradução Ivan Junqueira], em "Charles Baudelaire – poesia e prosa".

Charles Baudelaire, Nadar Gaspard Felix (1862)

Charles-Pierre Baudelaire (09 de abril de 1921, Paris, França - 31 de agosto de 1867, Paris, França). Poeta.

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