Conceição Evaristo

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"Gosto de escrever, na maioria das vezes dói, mas depois do texto escrito é possível apaziguar um pouco a dor, eu digo um pouco ... Escrever pode ser uma espécie de vingança, às vezes fico pensando sobre isso. Não sei se vingança, talvez desafio, um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda, executar um gesto de teimosia esperança. Gosto de dizer ainda que a escrita é para mim o movimento de dança-canto que o meu corpo não executou, é a senha pela qual eu acesso o mundo."

- Conceição Evaristo, em "Gênero e Etnia: uma escre (vivência) de dupla face".



Da calma e do silêncio

Quando eu morder

a palavra,

por favor,

não me apressem,

quero mascar,

rasgar entre os dentes,

a pele, os ossos, o tutano

do verbo,

para assim versejar

o âmago das coisas.


Quando meu olhar

se perder no nada,

por favor,

não me despertem,

quero reter,

no adentro da íris,

a menor sombra,

do ínfimo movimento.


Quando meus pés

abrandarem na marcha,

por favor,

não me forcem.

Caminhar para quê?

Deixem-me quedar,

deixem-me quieta,

na aparente inércia.

Nem todo viandante

anda estradas,

há mundos submersos,

que só o silêncio

da poesia penetra.

- Conceição Evaristo, em "Poemas da recordação e outros movimentos".



Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó

ecoou criança

nos porões do navio.

ecoou lamentos

de uma infância perdida.

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e

fome.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.

- Conceição Evaristo, em "Poemas da recordação e outros movimentos".



Do fogo que em mim arde

Sim, eu trago o fogo,

o outro,

não aquele que te apraz.

Ele queima sim,

é chama voraz

que derrete o bivo de teu pincel

incendiando até ás cinzas

O desejo-desenho que fazes de mim.


Sim, eu trago o fogo,

o outro,

aquele que me faz,

e que molda a dura pena

de minha escrita.

é este o fogo,

o meu, o que me arde

e cunha a minha face

na letra desenho

do auto-retrato meu.

- Conceição Evaristo, em "Poemas da recordação e outros movimentos".



Recordar é preciso

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos

A memória bravia lança o leme:

Recordar é preciso.


O movimento vaivém nas águas-lembranças

dos meus marejados olhos transborda-me a vida,

salgando-me o rosto e o gosto.

Sou eternamente náufraga,

mas os fundos oceanos não me amedrontam

e nem me imobilizam.


Uma paixão profunda é a boia que me emerge.

Sei que o mistério subsiste além das águas.

- Conceição Evaristo, em "Poemas da recordação e outros movimentos".



"Eu quero viver a grandeza da minha velhice e estou conseguindo sem mentiras, sem falsos remédios. Não quero me iludir com a cruel promessa da devolução de um tempo que já passou."

- Conceição Evaristo, em "Insubmissas lágrimas de mulheres".



"Gosto de ouvir, mas não sei se sou a hábil conselheira. Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E, no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta. […] Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência."

- Conceição Evaristo, em "Insubmissas lágrimas de mulheres".



“Mãe lavadeira, tia lavadeira e ainda eficientes em todos os ramos dos serviços domésticos. Cozinhar, arrumar, passar, cuidar de crianças. Também eu, desde menina, aprendi a arte de cuidar do corpo do outro. Aos oito anos surgiu meu primeiro emprego doméstico e ao longo do tempo, outros foram acontecendo. Minha passagem pelas casas das patroas foi alternada por outras atividades, como levar crianças vizinhas para escola, já que eu levava os meus irmãos. O mesmo acontecia com os deveres de casa. Ao assistir os meninos de minha casa, eu estendia essa assistência às crianças da favela, o que me rendia também uns trocadinhos. Além disso, participava com minha mãe e tia, da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas. Troquei também horas de tarefas domésticas nas casas de professores, por aulas particulares, por maior atenção na escola e principalmente pela possibilidade de ganhar livros, sempre didáticos, para mim, para minhas irmãs e irmãos”.

- Conceição Evaristo, depoimento no I Colóquio de Escritoras Mineiras

Belo Horizonte, maio de 2009.



“O olho do sol batia sobre as roupas estendidas no varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis, pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia...”

-Conceição Evaristo


“Eu escrevo porque, para mim, não há outra maneira de enfrentar, de suportar, de arrumar a vida, a não ser escrevendo. Enquanto escrevo faço da vida que me é apresentada o que quero. As personagens centrais de minha criação, seja ela ficcional ou crítica, nascem profundamente marcadas por minha condição de mulher negra e pobre na sociedade brasileira. Escrevo para os meus, mesmo sendo no nível do desejo. Pois é do cotidiano das classes populares que retiro o sumo da minha escrita. É desse meu lugar, é desse de “dentro para fora”, que minhas histórias brotam. Gostaria imensamente que essas histórias narradas voltassem como livro para as mãos das pessoas que me inspiram”.

-Conceição Evaristo, entrevista publicada originalmente no site da Biblioteca Nacional, 26 de novembro de 2015.




Maria da Conceição Evaristo de Brito (29 de novembro de 1946, Belo Horizonte MG). Poeta e escritora, graduada em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede pública de ensino da capital fluminense. É Mestre em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996), e Doutora em Literatura Comparada na Universidade Federal Fluminense, com a tese Poemas malungos, cânticos irmãos (2011).