Manoel de Barros

Fátima CChaves


"Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos."

- Manoel de Barros, em entrevista "caminhando para as origens", a Bosco Martins. 2007.

"Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal."

- Manoel de Barros, em entrevista "caminhando para as origens", a Bosco Martins. 2007.

"No caminho, as crianças me enriqueceram mais do que Sócrates. Pois minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo de estrada. Gosto de desvio e de desver."

- Manoel de Barros, em carta a José Castello, publicado no Jornal Valor Econômico, em 18 de março de 2012.

“Só o silêncio faz rumor no voo das borboletas."

- Manoel de Barros, em "O fazedor de amanhecer".

Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.”

- Manoel de Barros, em "Matéria de Poesia".

Poema

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.

Sobre o nada eu tenho profundidades.

Não tenho conexões com a realidade.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.

Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.

Fiquei emocionado.

Sou fraco para elogios.

- Manoel de Barros, em "Tratado geral das grandezas do ínfimo".

Manoel por Manoel

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do

ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade

do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não

pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem.

Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho

para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de

peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra

era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um

serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma

infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais

comunhão com as coisas do que comparação.

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz

comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e

suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago

das minhas raízes crianceiras a visão comungante e

oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro

me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que

eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem

de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde

havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era

o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino

e o rio. Era o menino e as árvores.

- Manoel de Barros, em "Meu quintal é maior do que o mundo" [Antologia].

O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.Não uso das palavras

Fatigadas de informar.

Dou mais respeito

Às que vivem de barriga no chão

Tipo água pedra sapo.

Entendo bem o sotaque das águas.

Dou importância às coisas desimportantes

E aos seres desimportantes

Prezo insetos mais que aviões.

Prezo a velocidade

das tartarugas mais do que as dos mísseis.

Tenho em mim esse atraso de nascença

Eu fui aparelhado

para gostar de passarinhos

Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior do que o mundo.

Sou um apanhador de desperdícios

Amo os restos

Como boas moscas.

Queria que minha voz tivesse formato de canto

Porque não sou da informática

Eu sou da invencionática.

Só uso minhas palavras para compor meus silêncios.

- Manoel de Barros, em "Memórias inventadas: as infâncias".

Borboletas

Borboletas me convidaram a elas.

O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.

Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.

Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,

um mundo livre aos poemas.

Daquele ponto de vista:

Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.

Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.

Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.

Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.

Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de

uma borboleta.

Ali até o meu fascínio era azul.

- Manoel de Barros, em "Ensaios fotográficos".

O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.

Gostei mais de um menino

que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira

era o mesmo que roubar um vento e

sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo

que catar espinhos na água.

O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces

de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino

gostava mais do vazio, do que do cheio.

Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino

que era cismado e esquisito,

porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que

escrever seria o mesmo

que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu

que era capaz de ser noviça,

monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.

Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!

Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios

com as suas peraltagens,

e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

- Manoel de Barros, em “Exercícios de ser criança”.

Eu não vou perturbar a paz

De tarde um homem tem esperanças.

Está sozinho, possui um banco.

De tarde um homem sorri.

Se eu me sentasse a seu lado

Saberia de seus mistérios

Ouviria até sua respiração leve.

Se eu me sentasse a seu lado

Descobriria o sinistro

Ou doce alento de vida

Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na praça, quieto.

- Manoel de Barros, em "Face imóvel" (1942).

Gorjeios

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se

inclui a sedução.

É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.

Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.

Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.

É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.

É por isso que as árvores deliram.

Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.

E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.

As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.

- Manoel de Barros, em "Ensaios Fotográficos".

O fazedor de amanhecer

Sou leso em tratagens com máquina.

Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.

Em toda a minha vida só engenhei

3 máquinas

Como sejam:

Uma pequena manivela para pegar no sono.

Um fazedor de amanhecer

para usamentos de poetas

E um platinado de mandioca para o

fordeco de meu irmão.

Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias

automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.

Fui aclamado de idiota pela maioria

das autoridades na entrega do prêmio.

Pelo que fiquei um tanto soberbo.

E a glória entronizou-se para sempre

em minha existência.

- Manoel de Barros, em "O fazedor de amanhecer".

Palavras

Palavra dentro da qual estou há milhões

de anos é árvore.

Pedra também.

Eu tenho precedências para pedra.

Pássaro também.

Não posso ver nenhuma dessas palavras que

não leve um susto.

Andarilho também.

Não posso ver a palavra andarilho que

eu não tenha vontade de dormir debaixo

de uma árvore.

Que eu não tenha vontade de olhar com

espanto, de novo, aquele homem do saco

a passar como um rei de andrajos nos

arruados de minha aldeia.

E tem mais: as andorinhas,

pelo que sei, consideram os andarilhos

Como árvore.

- Manoel de Barros, em "O fazedor de amanhecer".

Uma didática da invenção

No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá, onde a criança diz:

eu escuto a cor dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não

Funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta,

que é a voz

De fazer nascimentos -

O verbo tem que pegar delírio.

- Manoel de Barros, do poema "Uma didática da invenção - 'VII'", "O livro das ignorãças".

Uma didática da invenção

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava

escrito:

poesia é quando a tarde está competente para dálias.

É quando

ao lado de um pardal o dia dorme antes.

Quando o homem faz sua primeira lagartixa.

É quando um trevo assume a noite

e um sapo engole as auroras.

- Manoel de Barros, do poema "Uma didática da invenção - 'IV'", "O Livro das Ignorãnças".

"O Tempo só anda de ida.

A gente nasce, cresce, envelhece e morre.

Pra não morrer

É só amarrar o Tempo no Poste.

Eis a ciência da poesia:

Amarrar o Tempo no Poste!"

- Manoel de Barros, entrevista a Bosco Martins, 2007.

Tempo

"Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou: tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver com os lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi voltar quando infante por um gosto de voltar. Como quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de um ser. Então agora eu estou quando infante. Agora nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava para nós."

- Manoel de Barros, em "Memórias inventadas: a segunda infância".

"Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei."

- Manoel de Barros, entrevista concedida a José Castello. jornal O Estado de São Paulo, em agosto de 1996.

"Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando."

- Manoel de Barros, em “Ensaios Fotográficos”.

“Sou um homem de fé. Me acho incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim, a razão é acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio.”

-Manoel de Barros, entrevista publicada na edição 117 “Caros Amigos”, em 2008, por Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues.

Manoel de Barros - Manoel Wenceslau Leite de Barros ( 19 de dezembro de 1916, Cuiabá MT - 13 de novembro de 2014, Campo Grande MS). Poeta brasileiro.

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