Mário de Andrade

Fátima CChaves


“O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir.”

- Mário de Andrade, em " Poesias Completas".

"[...] Eu não vos convido à ilusão! Nem vos convido muito menos à conformista esperança, pois que fui o primeiro a vos substituir o vinho alegre desta cerimônia pela água salgada da realidade. Eu não vos convido sequer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. Eu vos quero alterados por um tropical amor do mundo, porque eu vos trago o convite da luta. Permiti-me a incorreção desta vulgaridade; ela porém não será talvez tão vulgar, pois que não vos convido à luta pela vossa vida, nem à caridosa dedicação pela vida enferma ou pobre, mas exatamente a luta por uma realidade mais alta e mais de todos."

- Mário de Andrade, "Oração de Paraninfo, 1935", em: "Aspectos da Música Brasileira".

Momento

O vento corta os seres pelo meio.

Só um desejo de nitidez ampara o mundo...

Faz sol. Fez chuva. E a ventania

Esparrama os trombones das nuvens no azul.

Ninguém chega a ser um nesta cidade,

As pombas se agarram nos arranha céus, faz chuva

Faz frio. E faz angústia...É este vento violento

Que arrebenta dos grotões da terra humana

Exigindo céu, paz e alguma primavera.

- Mário de Andrade (Abril de 1937), em "Poesias Completas", 1955.

Inspiração

São Paulo! Comoção de minha vida...

Os meus amores são flores feitas de original...

Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro...

Luz e bruma... Forno e inverno morno...

Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...

Perfumes de Paris... Arys!

Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...

São Paulo! Comoção de minha vida...

Galicismo a berrar nos desertos da América!

- Mário de Andrade, em "Poesias Completas", 1955.

Canção

... de árvores indevassáveis

De alma escusa sem pássaros

Sem fonte matutina

Chão tramado de saudades

À eterna espera da brisa,

Sem carinhos...como me alegrarei?

Na solidão solitude.

Na solidão entrei.

Era uma esperança alada,

Não foi hoje mas será amanhã,

Há de ter algum caminho

Raio de sol promessa de olhar

As noites graves do amor

O luar a aurora o amor...que sei!

Na solidão solitude,

Na solidão entrei,

Na solidão perdi-me...

O agouro chegou. Estoura

No coração devastado

O riso da mãe-da-lua,

Não tive um dia! uma ilusão não tive!

Ternuras que não me viestes

Beijos que não me esperastes

Ombros de amigos fiéis

Nem uma flor apanhei.

Na solidão solitude,

Na solidão entrei,

Na solidão perdi-me,

Nunca me alegrarei.

- Mário de Andrade, em "Poesias Completas", 1955.

Lundu do escritor difícil

Eu sou um escritor difícil

Que a muita gente enquizila,

Porém essa culpa é fácil

De se acabar duma vez:

É só tirar a cortina

Que entra luz nesta escurez.

Cortina de brim caipora,

Com teia caranguejeira

E enfeite ruim de caipira,

Fale fala brasileira

Que você enxerga bonito

Tanta luz nesta capoeira

Tal-e-qual numa gupiara.

Misturo tudo num saco,

Mas gaúcho maranhense

Que pára no Mato Grosso,

Bate este angu de caroço

Ver sopa de caruru;

A vida é mesmo um buraco,

Bobo é quem não é tatu!

Eu sou um escritor difícil,

Porém culpa de quem é!...

Todo difícil é fácil,

Abasta a gente saber.

Bajé, pixé, chué, ôh "xavié"

De tão fácil virou fóssil,

O difícil é aprender!

Virtude de urubutinga

De enxergar tudo de longe!

Não carece vestir tanga

Pra penetrar meu caçanje!

Você sabe o francês "singe"

Mas não sabe o que é guariba?

— Pois é macaco, seu mano,

Que só sabe o que é da estranja.

- Mário de Andrade, em "Poesias Completas", 1955.

Soneto

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...

...Azul bem leve, um nimbo, suavemente

Guarda-te a imagem, como um anteparo

Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro

Vive em teu corpo nu de adolescente,

A perna assim jogada e o braço, o claro

Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo

Também mais nada, só te olhar, enquanto

A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo

Que nasce das imperfeições. O encanto

Que nasce das adorações serenas.

- Mário de Andrade (Dezembro de 1937), em "Poesias Completas", 1955.

Toada da esquina

Pouco antes do meio-dia

Senti que vinha. Esperei.

Veio.Passou.Foi assim

Como se a Lua passasse

Por essa picada estranha

Que viajo desde nascer.

A redoma toda verde

Do meu peito escureceu.

Noite de maio bondoso.

Lá vai a Lua passando.

Há mesmo essa refração

Que me bota no pescoço

O cachecol da Via-Látea

E a Lua na minha mão.

Mas quando quero gozar

O belo táctil luar,

E passo a mão sobre os dedos...

Tenho de desiludir-me .

Foi mentira dos sentidos,

Foi o orvalho.Nada mais.

Veio.Passou.Foi assim

Como se a Lua...

Suspiro talqual na infância.

- Que queres, Mário? - Mamãe,

Quero a Lua - Hoje é impossível,

Já vai longe. Tem paciência,

Te dou a Lua amanhã.

E espero. Esperas...Espera...

- Pinhões!

- Mário de Andrade, em "Poesias Completas", 1955.

“O intelectual pode bem, e deverá sempre, se pôr a serviço duma dessas ideologias, duma dessas verdades temporárias. Mas por isso mesmo que é cultivado, e um ser livre, por mais que minta em proveito da verdade temporária que defende, nada no mundo o impedirá de ver, de recolher e reconhecer a Verdade da miséria do mundo. Da miséria dos homens. O intelectual verdadeiro, por tudo isso, sempre há de ser um homem revoltado e um revolucionário, pessimista, cético e cínico: fora da lei.”

- Mário de Andrade, 1976.

Ode ao burguês

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,

o burguês-burguês!

A digestão bem-feita de São Paulo!

O homem-curva! o homem-nádegas!

O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,

é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!

Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!

que vivem dentro de muros sem pulos;

e gemem sangues de alguns mil-réis fracos

para dizerem que as filhas da senhora falam o francês

e tocam os “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!

O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

Olha a vida dos nossos setembros!

Fará Sol? Choverá? Arlequinal!

Mas à chuva dos rosais

o èxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!

Morte às adiposidades cerebrais!

Morte ao burguês-mensal!

ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!

Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!

“– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?

– Um colar… – Conto e quinhentos!!!

Mas nós morremos de fome!

“Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!

Oh! purée de batatas morais!

Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!

Ódio aos temperamentos regulares!

Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!

Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!

Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,

sempiternamente as mesmices convencionais!

De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!

Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Todos para a Central do meu rancor inebriante

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!

Morte ao burguês de giolhos,

cheirando religião e que não crê em Deus!

Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!

Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!..

.-Mário de Andrade, de “Paulicéia Desvairada”.

"Mas na verdade ninguém se faz escritor. Tenho a certeza de que fui escritor desde que concebido. Ou antes... Meu avô materno foi escritor de ficção, meu pai também. Tenho uma desconfiança vaga de que refinei a raça."

- Mário de Andrade

“É um engano imaginar que o primitivismo brasileiro de hoje é estético. Ele é social. Pois toda arte socialmente primitiva que nem a nossa, é arte social. É arte de circunstância. É interessada. Toda arte exclusivamente artística e desinteressada não tem cabimento numa fase primitiva, fase de construção. É intrinsecamente individualista. E os efeitos do individualismo artístico no geral são destrutivos.”

- Mário de Andrade, 1962.

Mário de Andrade - 1922, por Tarsila do Amaral.

Mário de Andrade - Mário Raul de Moraes Andrade (09 de outubro de 1893, São Paulo SP, Brasil - 25 de fevereiro de 1945, São Paulo SP, Brasil). Poeta, escritor, crítico de literatura e de arte, musicólogo e pesquisador do folclore brasileiro.

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