Olga Savary

Fátima CChaves


Retrato de uma mulher madura com cabelos claros, apoiando o rosto nas mãos e olhando fixamente, com linhas alaranjadas vibrantes em primeiro plano que remetem à energia ou ao pensamento.

A Literatura é uma dama exigente, não dá descanso.

Ou você entrega a ela toda a sua energia ou ela lhe vira as costas.”

- Olga Savary, em entrevista a Clauder Arcanjo. Revista de Humor e Cultura Papangu nº 40, maio de 2007.

Aviso

Não te abandones um só momento

sou inconstante como a nuvem

sou mutável como o vento.

Não te dês inteiro um só momento

porque um dia te quererás de volta

e levarás somente um fragmento.

- Olga Savary (Belém, maio 1953), em "Repertório selvagem: Obra Reunida".

Enquanto

Sou inconstante como o vento

Sou inconstante como a vaga

Por isso fica enquanto estou desvelada

Enquanto eu não for vento ou vaga.

- Olga Savary, em "Hai Kays”.

Liberdade

[A Carlos Scliar]

Desligada

O vento morde meus cabelos sem medo:

Tenho todas as idades.

- Olga Savary, em "Hai Kays”.

Nua e crua

Não tendo pra onde voltar é que me largo pra rua,

Eu que seria leito de rio, leito de mar, maré,

Sem porto ou barco, peixe fora d´água, pássaro no vôo

Mas quede a asa?

- Olga Savary, em "Hai Kays”.

Pedido

[A Manuel Bandeira]

Quando eu estiver mais triste

mas triste de não ter jeito,

quando atormentados morcegos

– um no cérebro outro no peito –

me apunhalarem de asas

e me cobrirem de cinza,

vem ensaiando de leve

leve linguagem de flores.

Traze-me a cor arroxeada

daquela montanha – lembra?

que cantaste num poema.

Traze-me um pouco de mar

ensaiando-se em acalanto

na líquida ternura

que tanto já me embalou.

Meu velho poeta canta

um canto que me adormeça

nem que seja de mentira.

- Olga Savary (Caieiras, 25 jan. 1954), em “Espelho provisório”.

Quero apenas

Além de mim, quero apenas

essa tranqüilidade de campos de flores

e este gesto impreciso

recompondo a infância.

Além de mim

– e entre mim e meu deserto –

quero apenas silêncio,

cúmplice absoluto do meu verso,

tecendo a teia do vestígio

com cuidado de aranha.

- Olga Savary (Belém, julho de 1953).

Vida

Palavras, antes esquecê-las

lambendo todo o sal do mar

uma única pedra.

- Olga Savary, em "100 hai-kais", 1986.

Venha a nós o vosso reino

Cheios de imagens os olhos

e de silêncio os ouvidos.

Palavras: quase nada.

A cor do barro primitivo em tua pele,

terra-mãe, vinho de frutos, fogo, água,

em ti se nasce e em ti se morre.

Vais me recolhendo e recompondo

no labirinto-búzio-alto-das-coxas,

presságio de submerso jardim,

um ideal jardim em que me apresso

e tardo retardar a troca das marés

quando para ti me evado.

O que é amor senão a fome rara,

o susto no coração exposto

que com a chama ou a água devora,

é devorada, que desdenha a mente

por uma outra fome, vago pasto

água igual a fogo, fogo como lava?

Amor foi uma volta inteira de relógio mais 7 horas.

Amor: chega de gastar teu nome:

agora arde.

- Olga Savary, em "Magma".

Sextilha Camoniana

Daqui dou o viver já por vivido.

Quero estar quieta, sozinha agora,

igual a uma cobra de cabeça chata,

ficar sentada sobre os meus joelhos

como alguém coagulado em outra margem.

Daqui dou o viver já por vivido.

- Olga Savary (Rio, 1973), em "Sumidouro".

Pássaro

A noite não é tua

mas nos dias

— curtos demais para o vôo —

amadureces como um fruto.

Tuas asas seguem as estações.

É tua a curvatura da terra.

Pássaro, metáfora de poeta.

- Olga Savary, em "Sumidouro".

Mapa de esperança

Vinha pisando sobre toda a praia,

o sangue quieto — ou quase quieto —,

os pensamentos leves como espumas

e os cabelos soltos como nuvens.

Trágica como princesa de elegia,

meu estandarte é o desespero,

minha bandeira, indecisão.

Ainda assim, alegria, te festejo.

- Olga Savary (Arraial do Cabo, 1971), em “Altoanda”.

Caiçuçáua

Sempre o verão

e algum inverno

nesta cidade sem outono

e pouca primavera:

tudo isto te vê entrar

em mim todo inteiro

e eu em fogo vou bebendo

todos os teus rios

com uma insaciável sede

que te segue às estações

no dia aceso.

Em tua água sim está meu tempo,

meu começo. E depois nem poder ordenar:

te acalma, minha paixão.

- Olga Savary, em "Linha d'água".

Auá

E ao ver poemas que falavam

da alta sensualidade de um ser,

corpo vestido só de folhas,

que eu chamava King Kong

– um lúdico chamamento

da animal força humana –

veio o ciúme, sem perceber

que King Kong sou eu,

a pele de água coberta

pelo fervor desta mulher

Olga, não de homem.

- Olga Savary, em "Repertório selvagem: Obra Reunida".

Amanhã

Se devoras teus sonhos

quando se ensaiam apenas

e secamente represas

essa linguagem de flores

e teu desejo de asas

que restam subterrâneas,

quem serás tu, depois

do grande sono, amanhã?

- Olga Savary (Caieiras, janeiro de 1954), em "Repertório selvagem: Obra Reunida".

"Vida é o som do não, do sim, da pata do poeta: acrobata."

- Olga Savary, em "Poesia do Grão-Pará".

Auto despedida

Há algo nas manhãs que não entendo agora

e a um grito de minhas pernas não atendo.

Ainda depois da noite, noite me espia

e sonho dúvidas enormes e imóveis

como a imobilidade das aranhas.

Tão pouco tempo- e tenho de deixar-me

e queria nunca ter de repartir-me.

Começa a raiva da saudade

que inventei vou ter de mim.

- Olga Savary, "Repertório selvagem: Obra Reunida".

Olga Savary - Olga Augusta Maria Savary ( 21 de maio de 1933, Belém do Pará - 15 de maio de 2020, Teresópolis RJ). Jornalista, ensaísta, crítica, tradutora, escritora e poetisa brasileira.

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