Sophia de Mello Breyner Andressen

Fátima CChaves


Mulher idosa com cabelos grisalhos e batom vermelho sorri gentilmente, apoiando a mão direita com anéis no queixo e segurando um par de óculos de grau.

Felicidade

Pela flor pelo vento pelo fogo

Pela estrela da noite tão límpida e serena

Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo

Pelo amor sem ironia – por tudo

Que atentamente esperamos

Reconheci a tua presença incerta

Tua presença fantástica e liberta

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Livro sexto", 1962.

Pudesse eu

Pudesse eu não ter laços nem limites

Ó vida de mil faces transbordantes

Para poder responder aos teus convites

Suspensos na surpresa dos instantes!

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Poesia I", 1944.

As casas

Há sempre um deus fantástico nas Casas

Em que eu vivo, e em volta dos meus passos

Eu sinto os grandes anjos cujas asas

Contêm todo o vento dos espaços.

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Dia do mar", 1947.

Escuto

Escuto mas não sei

Se o que oiço é silêncio

Ou Deus

Escuto sem saber se estou ouvindo

O ressoar das planícies do vazio

Ou a consciência atenta

Que nos confins do universo

Me decifra e fita

Apenas sei que caminho como quem

É olhado amado e conhecido

E por isso em cada gesto ponho

Solenidade e risco

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Geografia", 1967.

Vela

Em redor da luz

A casa sai da sombra

Intensamente atenta

Levemente espantada

Em redor da luz

A casa se concentra

Numa espera densa

E quase silabada

Em redor da chama

Que a menor brisa doma

E que um suspiro apaga

A casa fica muda

Enquanto a noite antiga

Imensa e exterior

Tece seus prodígios

E ordena seus milénios

De espaço e de silêncio

De treva e de esplendor

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Geografia", 1967.

Sacode as nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,

Sacode as aves que te levam o olhar.

Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,

Mesmo que os meus gestos te trespassem

De solidão e tu caias em poeira,

Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras

E os teus olhos nunca mais possam olhar.

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Coral", 1950.

Como uma flor vermelha

À sua passagem a noite é vermelha,

E a vida que temos parece

Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,

Mas o eco dos seus passos

Enche o ar de caminhos e de espaços

E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece

E o desconhecido cresce

Como uma flor vermelha.

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Poesia I", 1944.

As rosas

Quando à noite desfolho e trinco as rosas

É como se prendesse entre os meus dentes

Todo o luar das noites transparentes,

Todo o fulgor das tardes luminosas,

O vento bailador das Primaveras,

A doçura amarga dos poentes,

E a exaltação de todas as esperas.

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Dia do mar", 1947.

As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes

Que ligam o meu ser, vivo e total,

À agitação do mundo do irreal,

E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora

A plenitude, o límpido esplendor

Que me foi prometido em cada hora,

E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,

Irei beber a voz dessa promessa

Que às vezes como um voo me atravessa,

E nela cumprirei todo o meu ser

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Poesia I", 1944.

Labirinto

Sozinha caminhei no labirinto

Aproximei meu rosto do silêncio e da treva

Para buscar a luz dum dia limpo

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Livro sexto", 1962.

Os ritmos

Inventei a dança para me disfarçar.

Ébria de solidão eu quis viver.

E cobri de gestos a nudez da minha alma

Porque eu era semelhante às paisagens esperando

E ninguém me podia entender.

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Coral", 1950.

Passagem

O êxtase do ar e a palavra do vento

Povoaram de ti meu pensamento.

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Mar novo", 1958.

A solidão

I

A noite abre os seus ângulos de lua

E em todas as paredes te procuro

A noite ergue as suas esquinas azuis

E em todas as esquinas te procuro

A noite abre as suas praças solitárias

E em todas as solidões eu te procuro

Ao longo do rio a noite acende as suas luzes

Roxas verdes azuis.

Eu te procuro.

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Cristo Cigano", 1961.

As imagens transbordam

As imagens transbordam fugitivas

E estamos nus em frente às coisas vivas.

Que presença jamais pode cumprir

O impulso que há em nós, interminável,

De tudo ser e em cada flor florir?

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Dia do mar", 1947.

Este é o tempo

Este é o tempo

Da selva mais obscura

Até o ar azul se tornou grades

E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite

Densa de chacais

Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Mar novo", 1958.

Fundo do mar

No fundo do mar há brancos pavores,

Onde as plantas são animais

E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge

A agitação das ondas.

Abrem-se rindo conchas redondas,

Baloiça o cavalo-marinho.

Um polvo avança

No desalinho

Dos seus mil braços,

Uma flor dança,

Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa

Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa

Tem um monstro em si suspenso.

- Sophia de Mello Breyner Andresen, em "Poesia I", 1944.

Biografia

Tive amigos que morriam, amigos que partiam

Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.

Odiei o que era fácil

Procurei-me na luz, no mar, no vento.

- Sophia de Mello Breyner Andresen (5/1997), em "Mar novo", 1958.

Sophia de Mello Breyner Andressen ( 06 de novembro de 1919, Porto, Portugal - 02 de julho d 2004, Lisboa, Portugal). Escritora e poetisa portuguesa.

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