Amilcar Cabral
Fátima CChaves

Eu sou tudo e sou nada...
Eu sou tudo e sou nada,
Mas busco-me incessantemente,
- Não me encontro!
Oh farrapos de nuvens, passarões não alados,
levai-me convosco!
Já não quero esta vida,
quero ir nos espaços
para onde não sei.
- Amílcar Cabral, em "Emergência da poesia em Amílcar Cabral".
No fundo de mim mesmo...
No fundo de mim mesmo
eu sinto qualquer coisa que fere minha carne,
que me dilacera e tortura …
… qualquer coisa estranha (talvez seja ilusão),
qualquer coisa estranha que eu tenho não sei onde
que faz sangrar meu corpo,
que faz sangrar também
a Humanidade inteira!
Sangue
Sangue escaldante pingando gota a gota
no íntimo de mim mesmo,
na taça inesgotável das minhas esperanças!
Luta tremenda, esta luta do Homem:
E beberei de novo – sempre, sempre, sempre -
este sangue não sangue, que escorre do meu corpo,
este sangue invisível – que é talvez a Vida!
- Amílcar Cabral, em "Emergência da poesia em Amílcar Cabral".
Que fazer?!...
Eu não compreendo o Amor,
eu não compreendo a Vida
Mistérios insondáveis,
Formidáveis,
Mistérios que o Homem enfrenta
Mistérios de um mistério
Que é a alma humana …
Eu não compreendo a Vida:
Há luta entre os humanos,
Há guerra,
Há fome, e há injustiça imensa:
H á pobres seculares,
Aspirações que morrem …
Enquanto os fortes gastam
Em gastos não precisos
Aquilo que outros querem …
Eu não compreendo o amor:
Amamos quem sabemos impossível
Sentir por nós aquilo
Que tanto cobiçamos …
A Vida não me entende,
Eu não compreendo a Vida.
Quero entender o Amor,
E o amor não me compreende!
- Amílcar Cabral, em "Emergência da poesia em Amílcar Cabral".
Poema
Quem é que não se lembra
Daquele grito que parecia trovão?!
– É que ontem
Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
Não respeitou fronteiras
E fez vibrar meu peito...
Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,
Confraternizou todos os Homens
E transformou a Vida...
... Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,
Que não transpôs o Mundo,
O Mundo que sou eu!
Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,
Muito longe,
Na minha garganta!
Na garganta de todos os Homens
- Amílcar Cabral, em "Emergência da poesia em Amílcar Cabral".
Regresso
Mamãe Velha, venha ouvir comigo
o bater da chuva lá no seu portão.
É um bater de amigo
que vibra dentro do meu coração.
A chuva amiga, Mamãe Velha, a chuva,
que há tanto tempo não batia assim...
Ouvi dizer que a Cidade-Velha,
— a ilha toda —
Em poucos dias já virou jardim...
Dizem que o campo se cobriu de verde,
da cor mais bela, porque é a cor da esp´rança.
Que a terra, agora, é mesmo Cabo Verde.
— É a tempestade que virou bonança...
Venha comigo, Mamãe Velha, venha,
recobre a força e chegue-se ao portão.
A chuva amiga já falou mantenha
e bate dentro do meu coração!
- Amílcar Cabral, em "Emergência da poesia em Amílcar Cabral".
A minha poesia sou eu
... Não, Poesia:
Não te escondas nas grutas de meu ser,
não fujas à Vida.
Quebra as grades invisíveis da minha prisão,
abre de par em par as portas do meu ser
— sai...
Sai para a luta (a vida é luta)
os homens lá fora chamam por ti,
e tu, Poesia és também um Homem.
Ama as Poesias de todo o Mundo,
— ama os Homens
Solta teus poemas para todas as raças,
para todas as coisas.
Confunde-te comigo...
Vai, Poesia:
Toma os meus braços para abraçares o Mundo,
dá-me os teus braços para que abrace a Vida.
A minha Poesia sou eu.
- Amílcar Cabral, em "revista Seara Nova". 1946.

Amílcar Lopes Cabral nasceu em 12 de setembro de 1924 em Bafatá, na Guiné. Poeta, político, e agrônomo, dotado de uma firme convicção na luta pela liberdade e a justiça social, dedicou todos os seus esforços em prol da independência dos povos da Guiné e de Cabo Verde. Em 20 de janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi barbaramente assassinado em Conacri, capital da República de Guiné.