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Torquato Neto
Atualizado em
Poema do aviso final
É preciso que haja alguma coisa
alimentando o meu povo;
uma vontade
um certeza
uma qualquer esperança.
É preciso que alguma
coisa atraia a vida
ou tudo será posto de lado
e na procura da vida
a morte virá na frente
e abrirá caminhos.
É preciso que haja algum respeito,
ao menos um esboço
ou a dignidade humana se afirmará
a machadadas.
- Torquato Neto, em "O Fato e A Coisa".
Cogito
eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível
eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora
eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.
- Torquato Neto, em "Os cem melhores poemas brasileiros do século".
Let´s Play That
quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando a minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let´s play that.
- Torquato Neto, em "Os Últimos Dias de Paupéria".
Nostalgia
ao amanhecer,
quando o mar tão grande,
gigante tenebroso,
balanceando as águas vem varrer
d'arreia branquinha da nossa praia
as marcas dos teus passos
as marcas do teu corpo nu,
as marcas de ti, que eu quero bem,
junto comigo,
a lua que já morre
chora enormes prantos, com saudades de ti,
querida:
com saudades do teu carinho.
- Torquato Neto, em “Juvenílias”.
Poema essencialmente noturno
À falta da pessoa,
hoje amarei a ausência também do sentimento antigo
e lembrarei que os dias já foram azuis
e as noites somente escuras
quando desconhecíamos a palavra medo
e não sentíamos medo.
Amarei o antigo sentimento da ternura casta
palpável, àquele tempo, em mim,
distribuída entre os aposentos da casa enorme,
os três degraus da entrada
o sol nascendo pelos punhos da rede
e o muro do colégio das freiras, quente.
(que estas lembranças me bastam)
Porque não há a pessoa
e eu caminho só e triste pelas calçadas do Rio
e não chego a nenhum destino, porque não tenho destino,
eu hoje amarei a distância que separa eu menino
de mim desesperado, aqui
e me perderei pelos caminhos enrolados uns nos outros
e rolarei de gozo sobre a minha sombra
e chorarei depois porque não sei voltar
- Torquato Neto, em "O Fato e A Coisa".
Um dia desses eu me caso com você
de tanto me perder, de andar sem sono
por essa noite sem nenhum destino
por essa noite escura em que abandono
uns sonhos do meu tempo de menino
de tanto não poder mais ter saudade
de tudo o que já tive e já perdi
dona menina, eu me resolvo agora
a ir-me embora pra longe daqui.
um dia desses eu me caso com você
você vai ver, você vai ver
um dia desses, de manhã, com padre e
[pompa
você vai ver como eu me caso com você
meu tempo de brincar já foi-se embora
e agora, o que é que eu vou fazer?
não tenho onde morar, vou caminhando
sem sono, sem mistérios, sem você;
pra terra onde nasci
não volto nunca mais
e esta cidade alheia tem segredos
que eu faço tudo pra não compreender
meu pobre coração não vale nada
anda perdido, não tem solução
mas se você quiser ser minha namorada
vamos tentar, não é?
não custa nada
até pode dar certo
e se não der
eu pego um avião, vou pra xangai
e nunca mais eu volto pra te ver.
- Torquato Neto, em "Os últimos dias de paupéria".
Soneto da contradição enorme
Faço força em esconder o sentimento
Do mundo triste e feio que eu vejo.
Tento esconder de todos o desejo
Que eu não sinto em viver todo o momento
Que passa. Mas que nunca passa inteiro.
Deixa comigo o rosto da lembrança
E o fantasma de só desesperança
Que me empurra e de mim me faz obreiro
De sonhos. Faço força em esconder
Do mundo, a dor, a mágoa e a cabeça
Que pensa tão-somente em não viver.
Faço força mas sei que não consigo
E em versos integral eu me derramo
Para depois sofrer. E então, prossigo.
- Torquato Neto, em “Torquatália - do Lado de Dentro”, vol. I.
Posição de ficar
No princípio era o verbo amar
Mas os sentimentos extinguiram-se
E retesaram-se os membros: não houve amor
Desde então
Agora, sabemos inútil procurar nos livros a fórmula derradeira deste verbo.
As coisas fizeram-se lúcidas
Notou-se o fato
E sentiu-se o medo
Deixaríamos o corpo livre se pudéssemos,
Mas o corpo está preso a tantos acontecimentos abstratos.
Choraríamos se fosse possível,
Mas não há mais lágrimas
E o rosto retesado pelo medo
É pulsação imaginada e só imaginada, insensível a quaisquer prantos
E no entanto nada procuramos.
Temos as mãos fechadas, não as forcem.
Nossas celas as sabemos impenetráveis, não as forcem.
Temos tanto sono, mas o venceremos,
Não nos forcem.
Conjugaremos o irrepreensível verbo esquecer, não perdoar.
Não perdoamos.
Em toda esta fraqueza nos sentimos fortes como os primeiros mártires,
Estamos na arena,
Sentimos medo e deixaremos nossos restos ao vosso escárnio.
Desaprendemos tudo.
Ambíguos em nós mesmos, amamos agora o silêncio das covas
E as esperamos: este o nosso fim.
- Torquato Neto, em "Os Últimos Dias de Paupéria".
O nome do mistério
Eu poderia dizer
Que agora é tarde e o nosso amor é outro
Que o nosso tempo agora
é o fim de tudo
e só nos resta alguns papéis
para rasgar
eu poderia dizer que agora é tarde e o nosso amor é morto
que o nosso amor agora é o fim do mundo
e não sobra nada mais
para esperar
eu poderia dizer mas eu não digo
o nome do mistério, o nome disso
e vou por mim aqui silencifrado
de volta ao lar, meu bem querendo ir
- Torquato Neto, em "Os últimos dias de paupéria".
Pra dizer adeus
Adeus
Vou prá não voltar
E onde quer que eu vá
Sei que vou sozinho
Tão sozinho amor
Nem é bom pensar
Que eu não volto mais
Desse meu caminho
Ah! pena eu não saber
Como te contar
Que esse amor foi tanto
E no entanto eu queria dizer
Vem
Eu só sei dizer
Vem
Nem que seja só
Pra dizer adeus
- Torquato Neto, em "Os últimos dias de paupéria".
Pessoal intransferível
Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.
Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, "herdeiro" da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: "leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi". - Adeusão.
- Torquato Neto, publicado na coluna "Geléia Geral", 14/09/71.
Desejo
Mas...
se eu pudesse um dia
com as mãos o sol pegar;
a lua apertar entre meus pés e
trêmulo de prazer
em plena Via Láctea, todos os astros reter comigo,
um gozo frenético e sem fim,
apesar de tanta infelicidade
eu chegaria a ter pena de mim mesmo
pois, indiscutivelmente,
eu estaria louco,
demente!
- Torquato Neto (Bahia, 02/07/61), em "Torquatália.
Torquato Neto ( 09 de novembro de 1944, Teresina, Piauí - 10 de novembro de 1972, Rio de Janeiro). Jornalista, compositor e poeta brasileiro.