Carlos Drummond de Andrade
Fátima CChaves
Nascer
Nascer
outra e outra vez
indefinidamente
como a planta sempre nascendo
da primeira semente;
pensar o dia bom
até criar a claridade
e nela descobrir
a primeira sílaba
da primeira canção.
- Carlos Drummond de Andrade, “Poesia Errante”, 1988.
Esperança é a planta que germina, mesmo não semeada.
- Carlos Drummond de Andrade, em "O avesso das Coisas".
Entre o amor e outro, é aconselhável um pouco de respiração.
- Carlos Drummond de Andrade, em "O avesso das Coisas".
&
A gente sempre se amando
A gente sempre se amando
nem vê o tempo passar.
O amor vai-nos ensinando
que é sempre tempo de amar.
- Carlos Drummond de Andrade, “Poesia Errante”, 1988.
&
Receita para não engordar sem necessidade de ingerir arroz integral e chá de jasmim
Pratique amor integral
uma vez por dia
desde a aurora matinal
até a hora em que o mocho espia.
Não perca um minuto só
neste regime sensacional.
Pois a vida é um sonho e, se tudo é pó,
que seja pó de amor integral.
- Carlos Drummond de Andrade, “Poesia Errante”, 1988.
Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
- Carlos Drummond de Andrade, em "O corpo".
Eterno
E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.
Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.
(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)
— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! é o amor que te tenho.
Eternalidade eternite eternaltivamente
eternuávamos
eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno.
Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma
[força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e
[passageiras as obras.
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
[mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
[afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios.
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.
Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
[essência
ou nem isso.
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
[pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma
[esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.
- Carlos Drummond de Andrade, em "Fazendeiro do Ar", 1954.
No Meio do Caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
-Carlos Drummond de Andrade, em “Alguma Poesia”, 1930.
Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
-Carlos Drummond de Andrade, “Receita de Ano Novo”.
&
“A beleza ainda me emociona muito. Não só a beleza física, mas a beleza natural. Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho uma visão da natureza muito mais rica do que eu tinha quando era jovem. Eu reparava mais em certas formas de beleza. Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório surpreendente de coisas magníficas e coisas belas. Contemplar o voo do pássaro, contemplar uma pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela... Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho que voou para cima de mim, à procura de comida ou de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a integração dos seres vivos no meio natural, para mim, é uma coisa que considero sublime.”
- Carlos Drummond de Andrade, trecho da última entrevista, em "O suplemento Idéias", do Jornal do Brasil, de 22 de agosto de 1987.
Carlos Drummond de Andrade (31 de outubro de 1902, Itabira MG - 17 de agosto de 1987, Rio de Janeiro). Escritor e poeta brasileiro.