Carlos Marighella

Fátima CChaves


Rondó da liberdade

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

Há os que têm vocação para escravo,

mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Não ficar de joelhos,

que não é racional renunciar a ser livre.

Mesmo os escravos por vocação

devem ser obrigados a ser livres,

quando as algemas forem quebradas.

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

O homem deve ser livre…

O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,

e pode mesmo existir quando não se é livre.

E no entanto ele é em si mesmo

a expressão mais elevada do que houver de mais livre

em todas as gamas do humano sentimento.

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

– Carlos Marighella (1939), no livro “Poemas: rondó da liberdade”.

Canto da terra

A terra tem tudo

e plantando é que dá.

E plantaram e plantaram

ou já estava plantado.

A floresta amazônica,

o rio e os peixes

e o balacubau.

A caatinga existia

com a braúna,

o mandacaru

e o gravatá cariango.

As coxilhas do Sul,

o maciço do Atlântico,

a Serra do Mar,

os pinheiros erguidos,

o rio Amazonas,

o rio São Francisco,

o rio Paraná…

Canaviais assobiando,

cortina verde estendida

sobre imensa extensão.

E plantaram café

e cacau e borracha…

E plantaram erva-mate…

Com o escravo e o imigrante

tudo se fez.

Comidas meu santo,

a mulata, a morena…

e até a loura surgiu.

A índia já havia,

a gringa veio depois.

Quem atrapalhou

foi gente de fora

que não trabalhou.

Eu canto a terra…

Todos sabem que outra

mais garrida não há…

“Teus risonhos, lindos campos têm mais flores”…

Bom! Lírios já houve,

mas agora é que não.

Eu canto a terra,

eu canto o povo…

Cantam os poetas

e cantando vão…

– Carlos Marighella, no livro “Poemas: rondó da liberdade”.

Liberdade

Não ficarei tão só no campo da arte,

e, ânimo firme, sobranceiro e forte,

tudo farei por ti para exaltar-te,

serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te

dominadora, em férvido transporte,

direi que és bela e pura em toda parte,

por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,

que não exista força humana alguma

que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,

possa feliz, indiferente à dor,

morrer sorrindo a murmurar teu nome.

– Carlos Marighella (São Paulo, Presídio Especial, 1939), no livro “Poemas: rondó da liberdade”.

O país de uma nota só

Não pretendo nada,

nem flores, louvores, triunfos.

nada de nada.

Somente um protesto,

uma brecha no muro,

e fazer ecoar,

com voz surda que seja,

e sem outro valor,

o que se esconde no peito,

no fundo da alma

de milhões de sufocados.

Algo por onde possa filtrar o pensamento,

a ideia que puseram no cárcere.

A passagem subiu,

o leite acabou,

a criança morreu,

a carne sumiu,

o IPM prendeu,

o DOPS torturou,

o deputado cedeu,

a linha dura vetou,

a censura proibiu,

o governo entregou,

o desemprego cresceu,

a carestia aumentou,

o Nordeste encolheu,

o país resvalou.

Tudo dó,

tudo dó,

tudo dó…

E em todo o país

repercute o tom

de uma nota só…

de uma nota só…

– Carlos Marighella, no livro “Poemas: rondó da liberdade”.

O perfume

Para cada mulher existe sempre um perfume

que agrada ao seu gosto

ou ao desejo que a inspira,

e que lhe é revelado pelo dom do instinto.

Cada mulher traz em si,

entranhado em seu corpo,

um perfume.

A cada espécie de amor

um perfume é mister,

seja amor puro,

infiel,

sacrossanto,

carnal.

Há uma busca eterna à mulher …

E quem sabe essa busca

se resume

na procura de um quê,

algo estranho, insondável,

quem sabe um perfume.

– Carlos Marighella (1939), no livro “Poemas: rondó da liberdade”.

Carlos Marighella (05 de dezembro de 1911, Salvador BA - 04 de novembro de 1969, São Paulo SP). Político, escritor, guerrilheiro e poeta, um dos organizadores da resistência contra a ditadura militar brasileira.

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