Ivan Junqueira

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Flor Amarela

Atrás daquela montanha

tem uma flor amarela;

dentro da flor amarela,

o menino que você era.


Porém, se atrás daquela

montanha não houver

a tal flor amarela,

o importante é acreditar

que atrás de outra montanha

tenha uma flor amarela

com o menino que você era

guardado dentro dela.

- Ivan Junqueira, em "Poesia reunida".


Talvez o vento saiba

Talvez o vento saiba dos meus passos,

das sendas que os meus pés já não abordam,

das ondas cujas cristas não transbordam

senão o sal que escorre dos meus braços.

As sereias que ouvi não mais acordam

à cálida pressão dos meus abraços,

e o que a infância teceu entre sargaços

as agulhas do tempo já não bordam.

Só vejo sobre a areia vagos traços

de tudo o que meus olhos mal recordam

e os dentes, por inúteis, não concordam

sequer em mastigar como bagaços.

Talvez se lembre o vento desses laços

que a dura mão de Deus fez em pedaços.

- Ivan Junqueira, em "Poemas reunidos".



O poema

Não sou eu que escrevo o meu poema:

ele é que se escreve e que se pensa,

como um polvo a distender-se, lento,

no fundo das águas, entre anêmonas

que nos abismos do mar despencam.


Ele é que se escreve com a pena

da memória, do amor, do tormento,

de tudo o que aos poucos se relembra:

um rosto, uma paisagem, a intensa

pulsação da luz manhã adentro.


Ela se escreve vindo do centro

de si mesmo, sempre se contendo.

É medido, estrito, minudente,

música sem clave ou instrumentos

que se escuta entre o som e o silêncio.


As palavras com que em vão ao invento

não são mais que ociosos ornamentos,

e nenhuma gala lhe acrescentam.

Seja belo ou, ao invés, horrendo,

a ele é que cabe todo engenho,


não a mim, que apenas o contemplo

como um sonho que se sustenta

sobre o nada, quando o mito e a lenda

eram as vísceras de que o poema

se servia para ir-se escrevendo.

- Ivan Junqueira, em "Essa música".






Elegia Íntima

Minha mãe chorando no fundo da noite

rachou o silêncio do quarto adormecido.

Meu pai olhava o escuro e não dizia nada,

Um relógio preto gotejava barulho.

Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.

Minha mãe chorando no fundo da noite

Apunhalou o sono de Deus.

- Ivan Junqueira, em "Os mortos".



Tristeza

Esta noite eu durmo de tristeza.

(O sono que eu tinha morreu ontem

queimado pelo fogo de meu bem.)

O que há em mim é só tristeza,

uma tristeza úmida, que se infiltra

pelas paredes de meu corpo

e depois fica pingando devagar

como lágrima de olho escondido.

(Ali, no canto apagado da sala,

meu sorriso é apenas um brinquedo

que a mãozinha da criança quebrou.)

E o resto é mesmo tristeza.

- Ivan Junqueira, em Os mortos".



Vai tudo em mim

Vai tudo em mim, enfim, se despedindo

neste pomar sem ramos ou maçãs,

sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs

que me recordem o que foi e é findo.


Tudo se faz sombrio, e as sombras vãs

do que eu não fui agora vão cobrindo

os ermos epitáfios, indo e vindo

entre as hermas e as lápides mais chãs.


Tudo se esvai num remoinho infindo

de atávicas moléculas malsãs:

essas do avô, do pai e das irmãs

que o sangue foi à alma transmitindo.


Tudo o que eu fui em mim de mim fugindo

em meu encalço vem me perseguindo.

- Ivan Junqueira, em “O outro lado".






Ivan Junqueira (03 de novembro de 1934 Rio de Janeiro - 03 de julho 2014, Rio de Janeiro). Poeta, crítico literário e tradutor brasileiro.