Manuel Bandeira

Fátima CChaves


O rio

Ser como o rio que deflui

Silencioso dentro da noite.

Não temer as trevas da noite.

Se há estrelas no céu, refleti-las

E se os céus se pejam de nuvens,

Como o rio as nuvens são água,

Refleti-las também sem mágoa

Nas profundidades tranquilas.

- Manuel Bandeira, em "Belo belo", 1948.

Belo belo

Belo belo belo

Tenho tudo quanto quero,

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios,

E o risco brevíssimo — que foi? Passou — de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,

E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia a dentro

Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,

Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos,

Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:

Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,

Não quero ser amado.

Não quero combater,

Não quero ser soldado.

— Quero a delicia de poder sentir as coisas mais simples.

- Manuel Bandeira, em "Lira dos cinquent’anos", 1940.

O bicho

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

- Manuel Bandeira, em "Belo belo", 1948.

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconsequente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d’água.

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcaloide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

- Manuel Bandeira, em "Libertinagem", 1930.

Alumbramento

Eu vi os céus! Eu vi os céus!

Oh, essa angélica brancura

Sem tristes pejos e sem véus!

Nem uma nuvem de amargura

Vem a alma desassossegar.

E sinto-a bela... e sinto-a pura...

Eu vi nevar! Eu vi nevar!

Oh, cristalizações da bruma

A amortalhar, a cintilar!

Eu vi o mar! Lírios de espuma

Vinham desabrochar à flor

Da água que o vento desapruma...

Eu vi a estrela do pastor...

Vi a licorne alvinitente!

Vi... vi o rastro do Senhor!...

E vi a Via-Láctea ardente...

Vi comunhões... capelas... véus...

Súbito... alucinadamente...

Vi carros triunfais... troféus...

Pérolas grandes como a lua...

Eu vi os céus! Eu vi os céus!

— Eu vi-a nua... toda nua!

- Manuel Bandeira [Carnaval, 1919], em "Fotobiografia Manuel Bandeira".

Estrela da Manhã

Eu quero a estrela da manhã

Onde está a estrela da manhã?

Meus amigos meus inimigos

Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua

Desapareceu com quem?

Procurem por toda a parte

Digam que sou um homem sem orgulho

Um homem que aceita tudo

Que me importa? Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites

Fui assassino e suicida

Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada

Atribuladora dos aflitos

Girafa de duas cabeças

Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros

Pecai com os sargentos

Pecai com os fuzileiros navais

Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos

Com o padre e com o sacristão

Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas

comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples

Que tu desfalecerás

Procurem por toda parte

Pura ou degradada até a última baixeza

eu quero a estrela da manhã.

- Manuel Bandeira, no livro "Libertinagem e Estrela da Manhã".

Nu

Quando estás vestida,

Ninguém imagina

Os mundos que escondes

Sob as tuas roupas.

(Assim, quando é dia,

Não temos noção

Dos astros que luzem

No profundo céu.

Mas a noite é nua,

E, nua na noite,

Palpitam teus mundos

E os mundos da noite.

Brilham teus joelhos,

Brilha o teu umbigo,

Brilha toda a tua

Lira abdominal.

Teus seios exíguos

— Como na rijeza

Do tronco robusto

Dois frutos pequenos —

Brilham.) Ah, teus seios!

Teus duros mamilos!

Teu dorso! Teus flancos!

Ah, tuas espáduas!

Se nua, teus olhos

Ficam nus também:

Teu olhar, mais longe,

Mais lento, mais líquido.

Então, dentro deles,

Bóio, nado, salto

Baixo num mergulho

Perpendicular.

Baixo até o mais fundo

De teu ser, lá onde

Me sorri tu’alma

Nua, nua, nua…

- Manuel Bandeira, em "Estrela da tarde", 1960.

Poética

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário

o cunho vernáculo de um vocábulo.

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja

fora de si mesmo

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante

exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes

maneiras de agradar às mulheres, etc

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbedos

O lirismo difícil e pungente dos bêbedos

O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

- Manuel Bandeira, no livro "Libertinagem e Estrela da Manhã".

Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:

- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!

Passei a vida à toa, à toa...

- Manuel Bandeira, no livro "Libertinagem e Estrela da Manhã".

Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.

Só em Deus ela pode encontrar satisfação.

Não noutra alma.

Só em Deus — ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

- Manuel Bandeira, em "Belo belo", 1948.

O último poema

Assim eu quereria meu último poema

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais

Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas

Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume

A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos

A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

- Manuel Bandeira, no livro "Libertinagem e Estrela da Manhã".

O impossível carinho

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo

Quero apenas contar-te a minha ternura

Ah se em troca de tanta felicidade que me dás

Eu te pudesse repo

- Eu soubesse repor -

No coração despedaçado

As mais puras alegrias de tua infância!

- Manuel Bandeira, no livro "Libertinagem e Estrela da Manhã".

Retrato: Manuel Bandeira, por Cândido Portinari

Manuel Bandeira - Manuel Carneiro de Souza Filho (19 de abril de 1886, Recife, Pernambuco, Brasil - 13 de outubro de 1968, Rio de Janeiro, Brasil). Poeta, cronista, ensaísta, memorialista, tradutor e organizador de antologias.

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