Marina Colasanti

Fátima CChaves


Agradeço

Agradeço cada poema

cada prato posto à mesa

cada ponto de costura ou

vírgula de escrita,

agradeço

cada gesto que me traz sorriso

e que se expande

por tudo dou graças,

sem saber a quem.

-Marina Colasanti

Outras palavras

Para dizer certas coisas

são precisas

palavras outras

novas palavras

nunca ditas antes

ou nunca

antes

postas lado a lado.

São precisas

palavras que inventaram

seu percurso

e cantam sobre a língua.

Para dizer certas coisas

são precisas palavras

que amanhecem.

– Marina Colasanti, em “Fino sangue”.

Rota de colisão

De quem é esta pele

que cobre a minha mão

como uma luva?

Que vento é este

que sopra sem soprar

encrespando a sensível superfície?

Por fora a alheia casca

dentro a polpa

e a distância entre as duas

que me atropela.

Pensei entrar na velhice

por inteiro

como um barco

ou um cavalo.

Mas me surpreendo

jovem velha e madura

ao mesmo tempo.

E ainda aprendo a viver

enquanto avanço

na rota em cujo fim

a vida

colide com a morte.

– Marina Colasanti, no livro “Rota de colisão”.

Porta do armário aberta

Abro a porta do armário

como abro um diário,

a minha vida ali

dependurada

meu frusto cotidiano

sem segredos

intimidade exposta

que os botões não defendem

nem se veda nos bolsos,

espelho mais real que todo espelho

entregando à devassa

as medidas do corpo.

Armário

tabernáculo do quarto

que abro de manhã

como à janela

para sagrar o ritual do dia.

Sala de Barba Azul

coalhada de pingentes

longas saias e véus

emaranhados sem que sangue goteje.

Corpos decapitados

ausentes minhas mãos

dos murchos braços.

Do armário minhas roupas

me perseguem

como baú de herança ou

maldição.

Peles minhas pendentes

em repouso

silenciosas guardiãs

dos meus perfumes

tessituras de mim

mais delicadas

que a luz desbota

que o tempo gasta

que a traça rói

ainda assim durarão nos seus cabides

muito mais do que eu sobre meus ossos.

Nenhuma levarei.

Irei despida

deixando atrás de mim

a porta aberta.

– Marina Colasanti, no livro “Rota de colisão”.

Frutos e flores

Meu amado me diz

que sou como maçã

cortada ao meio.

As sementes eu tenho

é bem verdade.

E a simetria das curvas.

Tive um certo rubor

na pele lisa

que não sei

se ainda tenho.

Mas se em abril floresce

a macieira

eu maçã feita

e pra lá de madura

ainda me desdobro

em brancas flores

cada vez que sua faca

me traspassa.

– Marina Colasanti, no livro “Rota de colisão”.

Jardinagem abaixo do equador

Deve ser erro meu

querer jardim lá onde a natureza

só pretende selva.

Gramados, convenhamos,

são coisas de europeu

com galgos, gamos

e um castelo ao fundo

erva aparada em

séculos de cascos

coturnos e

sapatinhos de damas,

séculos de batalhas

e sangue nas raízes.

Aqui a batalha que travo

é muito outra,

luta contra as daninhas

contra as pragas

sempre mais fortes do que grama

ou flores.

Arranco e arranco

despedaçando em vão as pobres unhas.

Onças, tamanduás, serpentes e gambás

riem de mim

no escuro não distante.

E me pergunto se não sou eu

a praga

nessa insistência cega em extirpar

quem aqui nasce e vive

de direito.

– Marina Colasanti, em “Poesia em 4 tempos”.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. [...]

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

-Marina Colasanti (trecho selecionado).

Atrás do vidro

Vivemos vulneráveis e expostos

como lagosta em tanque de restaurante

à espera de que alguém se aproxime

— esse difuso alguém que não sabemos —

e apontando com o dedo diga:

“É esta.”

-Marina Colasanti

Marina Colasanti - nasceu em Asmara, Eritréia, em 26 de setembro de 1937. Emigrou para o Brasil em 1948. Faleceu em 28 de janeiro de 2025, no Rio de Janeiro. Jornalista, tradutora, escritora e poetisa.

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