Álvares de Azevedo

Fátima CChaves


Meu Desejo

Meu desejo? era ser a luva branca

Que essa tua gentil mãozinha aperta:

A camélia que murcha no teu seio,

O anjo que por te ver do céu deserta....

Meu desejo? era ser o sapatinho

Que teu mimoso pé no baile encerra....

A esperança que sonhas no futuro,

As saudades que tens aqui na terra....

Meu desejo? era ser o cortinado

Que não conta os mistérios do teu leito;

Era de teu colar de negra seda

Ser a cruz com que dormes sobre o peito.

Meu desejo? era ser o teu espelho

Que mais bela te vê quando deslaças

Do baile as roupas de escomilha e flores

E mira-te amoroso as nuas graças!

Meu desejo? era ser desse teu leito

De cambraia o lençol, o travesseiro

Com que velas o seio, onde repousas,

Solto o cabelo, o rosto feiticeiro....

Meu desejo? era ser a voz da terra

Que da estrela do céu ouvisse amor!

Ser o amante que sonhas, que desejas

Nas cismas encantadas de languor!

- Álvares de Azevedo, “Obras de Manuel Antônio Álvares de Azevedo” (1862).

Cantiga de viola

A existência dolorida

Cansa em meu peito: eu bem sei

Que morrerei...

Contudo da minha vida

Podia alentar-se a flor

No teu amor!

Do coração nos refolhos

Solta um ai! num teu suspiro

Eu respiro...

Mas fita ao menos teus olhos

Sobre os meus... eu quero-os ver

Para morrer!

Guarda contigo a viola

onde teus olhos cantei...

E suspirei!

Só a idéia me consola

Que morro como vivi...

Morro por ti!

Se um dia tu’alma pura

Tiver saudades de mim,

Meu serafim!

Talvez notas de ternura

Inspirem o doudo amor

Do trovador!

- Álvares de Azevedo, "Lira dos Vinte Anos".

Meditação

O dia descobre a terra: a noite descobre os céus.

MARQUÊS DE MARICÁ.

Eu creio, amigo, que a existência inteira

É um mistério talvez; ? mas n'alma sinto

De noite e dia respirando flores,

Sentindo as brisas, recordando aromas

E esses ais que ao silêncio a sombra exala

E enchem o coração de ignota pena

Como a íntima voz de um ser amigo,

Que essas tardes e brisas, esse mundo

Que na fronte do moço entorna flores,

Que harmonias embebem-lhe no seio ?

Têm uma alma também que vive e sente...

A natureza bela e sempre virgem

Com suas galas gentis na fresca aurora,

Com suas mágoas na tarde escura e fria,

E essa melancolia e morbideza

Que nos eflúvios do luar ressumbra ?

Não é apenas uma lira muda

Onde as mãos do poeta acordam hinos

E a alma do sonhador lembranças vibra...

Por essas fibras da natura viva,

Nessas folhas e vagas, nesses astros,

Nessa mágica luz que me deslumbra

E enche de fantasia até meus sonhos ?

Palpita porventura um almo sopro,

Espírito do céu que as reanima,

E talvez lhes murmura em horas mortas

Estes sons de mistério e de saudade,

Que lá no coração repercutidos

O gênio acordam que enlanguesce e canta!

(...)

São idéias talvez... Embora riam

Homens sem alma, estéreis criaturas:

Não posso desamar as utopias,

Ouvir e amar à noite entre as palmeiras

Na varanda ao luar o som das vagas,

Beijar nos lábios uma flor que murcha,

E crer em Deus como alma animadora

Que não criou somente a natureza,

Mas que ainda a relenta em seu bafejo,

Ainda influi-lhe no sequioso seio

De amor e vida a eternal centelha !

Por isso, ó meu amigo, à meia-noite

Eu deito-me na relva umedecida,

Contemplo o azul do céu, amo as estrelas,

Respiro aromas, e o arquejante peito

Parece remoçar em tanta vida,

Parece-me alentar-se em tanta mágoa,

Tanta melancolia, e nos meus sonhos,

Filho de amor e Deus, eu amo e creio!

- Álvares de Azevedo, “Obras de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1862)”.

Meu Sonho

EU

Cavaleiro das armas escuras,

Onde vais pelas trevas impuras

Com a espada sanguenta na mão?

Porque brilham teus olhos ardentes

E gemidos nos lábios frementes

Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?

Do corcel te debruças no dorso....

E galopas do vale através...

Oh! da estrada acordando as poeiras

Não escutas gritar as caveiras

E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,

Cavaleiro das armas escuras,

Macilento qual morto na tumba?...

Tu escutas.... Na longa montanha

Um tropel teu galope acompanha?

E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? - que mistério,

Quem te força da morte no império

Pela noite assombrada a vagar?

O FANTASMA

Sou o sonho de tua esperança,

Tua febre que nunca descansa,

O delírio que te há de matar!...

-Álvares de Azevedo, “Obras de Manuel Antônio Álvares de Azevedo” (1862).

Um Cadáver de Poeta

Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver! Tu

não pesaste sobre a terra: a terra te seja leve!

L. UHLAND.

I

De tanta inspiração e tanta vida

Que os nervos convulsivos inflamava

E ardia sem conforto...

O que resta? uma sombra esvaecida,

Um triste que sem mãe agonizava...

Resta um poeta morto!

Morrer! e resvalar na sepultura,

Frias na fronte as ilusões ? no peito

Quebrado o coração!

Nem saudades levar da vida impura

Onde arquejou de fome... sem um leito!

Em treva e solidão!

Tu foste como o sol; tu parecias

Ter na aurora da vida a eternidade

Na larga fronte escrita...

Porém não voltarás como surgias!

Apagou-se teu sol da mocidade

Numa treva maldita!

Tua estrela mentiu. E do fadário

De tua vida a página primeira

Na tumba se rasgou...

Pobre gênio de Deus, nem um sudário!

Nem túmulo nem cruz! como a caveira

Que um lobo devorou!...

II

Morreu um trovador - morreu de fome.

Acharam-no deitado no caminho:

Tão doce era o semblante! Sobre os lábios

Flutuava-lhe um riso esperançoso.

E o morto parecia adormecido.

Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte

Nas horas da agonia! Nem um beijo

Em boca de mulher! nem mão amiga

Fechou ao trovador os tristes olhos!

Ninguém chorou por ele... No seu peito

Não havia colar nem bolsa d'oiro;

Tinha até seu punhal um férreo punho...

Pobretão! não valia a sepultura!

Todos o viam e passavam todos.

Contudo era bem morto desde a aurora.

Ninguém lançou-lhe junto ao corpo imóvel

Um ceitil para a cova!... nem sudário!

O mundo tem razão, sisudo pensa,

E a turba tem um cérebro sublime!

De que vale um poeta - um pobre louco

Que leva os dias a sonhar - insano

Amante de utopias e virtudes

E, num tempo sem Deus, ainda crente?

(...)

- Álvares de Azevedo,” Poesias de Manuel Antônio Álvares de Azevedo" (1853).

Manuel Antônio Álvares de Azevedo (São Paulo SP, 12 de setembro de 1831 - Rio de Janeiro RJ, 25 de abril de 1852). Poeta, contista e dramaturgo. Devido a sua morte prematura, todos os trabalhos de Álvares de Azevedo foram publicados postumamente.

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