Mia Couto

Fátima CChaves


Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.”

- Mia Couto, em "Antes de Nascer o Mundo".

Não é da luz que carecemos. Milenarmente a grande estrela iluminou a terra e, afinal, nós pouco aprendemos a ver. O mundo necessita ser visto sob outra luz: a luz do luar, essa claridade que cai com respeito e delicadeza. Só o luar revela o lado feminino dos seres. Só a lua revela intimidade da nossa morada terrestre.

Necessitamos não do nascer do Sol. Carecemos do nascer da Terra."

- Mia Couto, no epígrafe do livro "Contos do nascer da terra".

"Não fomos feitos para caber numa receita puritana encomendada para domesticar e padronizar o mundo. O discurso do politicamente correto é um crime contra as nossas nações, contra originalidade e a diversidade dos nossos povos."

- Mia Couto, na "Conferência do Fronteiras do Pensamento, 2012.

Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.

A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escurasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.”

– Mia Couto, do conto “Inundação”, em “O fio das missangas”.

"Como ele sempre dissera: o rio e o coração, o que os une? O rio nunca está feito, como não está o coração. Ambos são sempre nascentes, sempre nascendo. Ou como eu hoje escrevo: milagre é o rio não findar mais. Milagre é o coração começar sempre no peito de outra vida."

- Mia Couto, na contracapa do livro"A chuva pasmada".

"A missanga, todas a veem.

Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo."

- Mia Couto, em "O fio das missangas".

Beijo

Não quero o primeiro beijo:

basta-me

o instante antes do beijo.

Quero-me

corpo ante o abismo,

terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo

entre tremor e temor,

o escurecer da luz

no desaguar dos corpos:

o amor

não tem depois.

Quero o vulcão

que na terra não toca:

o beijo antes de ser boca.

- Mia Couto, em “Tradutor de chuvas”.

(Escre)ver-me

nunca escrevi

sou

apenas um tradutor de silêncios

a vida

tatuou-me os olhos

janelas

em que me transcrevo e apago

sou

um soldado

que se apaixona

pelo inimigo que vai matar

- Mia Couto (fevereiro 1985), em "Raiz de orvalho e outros poemas".

Frutos

A bondade da mangueira

não é o fruto.

É a sombra.

A térrea,

quotidiana,

abnegada sombra:

no inverso do suor colhida,

no avesso da mão guardada.

Há a estação dos frutos.

Ninguém celebra a estação das sombras.

Assim, o amor e a paixão:

um, fruto; outro, sombra.

A suave e cruel mordedura

do fruto em tua boca:

mais do que entrar em ti

eu quero ser tu.

O que em mim espanta:

não a obra do tempo

mas a viagem do Sol na seiva da árvore

A arte da mangueira

é a veste de sombra

embrulhando o seu ventre solar.

Para o homem

vale a polpa.

Para a terra

só a semente conta.

- Mia Couto, em "Tradutor de chuvas".

Idade

Mente o tempo:

a idade que tenho

só se mede por infinitos.

Pois eu não vivo por extenso.

Apenas fui a vida

em relampejo do incenso.

Quando me acendi

foi nas abreviaturas do imenso.

- Mia Couto, em “Vagas e lumes”.

Lições

Não aprendi a colher a flor

sem esfacelar as pétalas.

Falta-me o dedo menino

de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia

suspender o tempo,

soterrar abismos

e nomear as estrelas.

Cresci,

perdi pontes,

esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,

hei-de aprender a carícia da brisa.

Trêmula, a haste

me pede

o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,

a faca me recorda, no gume do beijo,

a aresta do adeus.

Não, não aprenderei

nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,

eu, em mim, colha um jardim?

- Mia Couto, em "Idades cidades divindades".

Vagas e lumes

Há quem se deite

em fogo

para morrer.

Pois eu sou

como o vagalume:

- só existo

quando me incendeio.

- Mia Couto, em "Vagas e lumes".

A demora

O amor nos condena:

demoras

mesmo quando chegas antes.

Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida

e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas

já não sou senão saudade

e as flores

tombam-me dos braços

para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar

em que te aguardo,

só me resta água no lábio

para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,

tomo a lua por minha boca

e a noite, já sem voz

se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba

e é uma nuvem.

O teu corpo se deita no meu,

um rio se vai aguando até ser mar.

- Mia Couto, em "Idades cidades divindades".

"Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentimentos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra "pensar" que significa "curar" ou "tratar" um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar das doenças pelas quais padece."

- Mia Couto, em "E se Obama fosse africano?".

"Quero morar numa cidade onde se sonha com chuva. Num mundo onde chover é a maior felicidade. E onde todos chovemos."

- Mia Couto, em "Antes de nascer o mundo".

"Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho."

- Mia Couto, (Crença dos habitantes de Matimati), em "Terra sonâmbula".

“Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

- Mia Couto, em "Antes de Nascer o Mundo".

De que vale ter voz

se só quando não falo é que me entendem?

De que vale acordar

se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(Versos do menino que fazia versos)

- Mia Couto, do conto "O menino que escrevia versos". em "O fio das missangas".

Autobiografia

Onde eu nasci

há mais terra que céu.

Tanto leito é uma bênção

para mortos e sonhadores.

E de tão pouco ser o céu

nasce o sol

em gretas nos nossos pés

e os corações se apertam

quando remoinhos de poeira

se elevam nos telhados.

As mães

espanam o teto

e poeiras de astros

cobrem o soalho.

De tão raso o firmamento,

a chuva tropeça nas copas

enquanto nuvens

se engravidam de rios.

Com tanta escassez de céu

não há encosto

nem para a mais minguante lua

e os meninos,

na ponta dos dedos,

ascendem estrelas.

Pois,

nessa terra

que é tanta para tão pouco céu,

calhou-me a mim ser ave.

Pequenas que são,

as minhas asas parecem-me enormes.

Envergando,

escondo-as dos olhares vizinhos.

Nas minhas costas

pesam

versos e plumas.

Voarei,

um dia,

sem saber

se é de terra ou de céu

a pegada do voo que sonhei.

- Mia Couto, em "Vagas e lumes".

"Os outros passam a escrita a limpo,

Eu passo a escrita a sujo.

Como os rios que se lavam em encardidas águas.

Os outros tem caligrafia, eu tenho sotaque.

O sotaque da terra."

- Mia Couto, em "O outro pé da sereia".

Mia Couto - Antônio Emílio Leite Couto (05 de julho de 1955, Beira, Moçambique). Biólogo, jornalista, escritor e poeta.

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